sexta-feira, 28 de setembro de 2012

VÍCIOS_MAURICO FERREIRA

Minha relação com o cigarro não foi diferente da relação que tive com alguns seres humanos.

No inicio, havia aquela paixão, e acima de tudo admiração. Lembro-me que fazia questão de parar meus afazeres fossem eles quais forem; tudo por causa daquele sacro cinco minutos de veneração ingênua. E assim era: sentado em alguma cadeira ou escorado em algum muro, entregava-me a ele de tal maneira que o resto do mundo passava a me ser exclusivo.

Embora fosse um triângulo amoroso, não havia ciúmes; numa ponta, minha boca, na outra, a fagulha da paixão; hai! e isso incitava-me tanta euforia. E assim eu ficava: ansioso diante da espera daquela manta acrobática que ora apresentava-se amórfica ora representando algum concreto objeto, um busto, rosto ou até mesmo um oceano. E em seguida o que era tão aguardado acontecia: o manto surgia de dentro de mim e rodava, quase uma baiana, quase uma bailarina alado; e eram duas, três, muitas! E aquela beleza no ar, vulcão de neve tão sutil e singela gradativamente sumia, desintegrava-se e espalhava-se no ar, muitas vezes conduzida pelo robusto parceiro: o vento, e seguiam, rumo ao céu, camuflando-se nas estrelas ou nas nuvens brancas e fofas como tais.

É, mas vejo que a paixão acabou, aquele algodão tornou-se amargo, e acima de tudo a admiração também evaporou, como se cada vez que eu expelisse de dentro de mim aquela fumaça, um pouquinho de tudo seguisse junto, rumo ao além. E hoje vejo-me perdido no tempo, como se tivesse voltado ao feudalismo, pois assumo a servidão. Estou preso a ele, num ciclo de posse irracional, sob a mentira de que ainda nos necessitamos.

Mais claro? A situação está assim: acendo-o, trago e apago enterrado-o no cinzeiro junta a tantas outras pontas ou entre meu sapato e as calçadas imundas de um lugar  qualquer.  Mas aí está; faço tudo sem me dar conta, como se ele nunca tivesse estado alí nas minhas mãos, na minha boca e internamente lambendo o meu corpo. E assim como no sexo, também não há diferença, sempre damos uma rapidinha antes do ônibus chegar. Tão logo este chega, nem o apago, jogo no chão, descarto-o mesmo pela metade; a porta se abre e subo afoito os degraus, e quando os desço, lá está ele de novo entre os dedos.

Na verdade hoje ele só complementa os meus dedos. Entre o indicador e o médio situa-se como um sexto elemento, e daí em resposta à minha indiferença, ele me corrói, sua cólera é tanta que do seu branco me amarela as pinças de carne  que  tanto lhe sustentaram, sustentaram, e assim o faz igualmente à minha boca: no meu beijo frio, vinga-se escarrando nos meus dentes e língua.

É, aquela que era admiração branca, antes vinda do meu cerne, antes uma opção sadia e feliz, tornou-se meu necessário ar infernal e está agora manchando de outras cores impuras o meu ser, cujo raio X muito evidencia e não nos engana, doença! Por isso digo, minha relação com o cigarro não foi diferente da relação que tive com alguns seres humanos; a linha tênue, antes amor e de repente objeto, diferencia-se apenas quanto a fisiologia, enquanto um manchou-me o pulmão, a outra, outro órgão.                            

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